Chá e poesia #02 - Fernando Pessoa


Deixo ao cego e ao surdo
    A alma com fronteiras,
Que eu quero sentir tudo
    De todas as maneiras.

Do alto de ter consciência
    Contemplo a terra e o céu,
Olho-os com inocência:
    Nada que vejo é meu.

Mas vejo tão atento
    Tão neles me disperso
Que cada pensamento
    Me torna já diverso.

Se as coisas são estilhaços
    Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
    Impreciso e diverso.

E se a própria alma vejo
    Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
    De por minha a julgar.

Ah. tanto como a terra
    E o mar e o vasto céu,
Quem se crê próprio erra,
    Sou vário e não sou meu.

Se quanto sinto é alheio
    E de mim sou sentiente,
Como é que a alma veio
    A conhecer-me como ente?

Assim eu me acomodo
    Com o que Deus criou,
Deus tem diverso modo
    Diversos modos sou.

Assim a Deus imito,
    Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
    E a unidade até.
24-8-1930

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AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
1-4-1931

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Quem sabe se o que pensamos
Não é só o que esquecemos.
Vamos, remando, sob ramos
Do rio, assentes nos remos;

E uma visão mais remota
Que as margens e o arvoredo
Torce sem querer a rota
Que se seguia em segredo.

Cada rio tem dois rios,
Por um íamos remando
Sem atenção nem desvios,
Contentes de ir avançando.

Mas quando tristes e quedos,
Íamos remando a fio,
Sentimos que os arvoredos
Cobriam um outro rio.
26-7-1934

Um dos tesouros que trouxe comigo de Lisboa, quando conheci a livraria mais antiga do mundo.

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